O
título da série Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente soa como alerta e homenagem. Alerta, porque lembra que ninguém sobrevive sozinho. Homenagem, porque reverencia quem, nos anos 80, em meio à epidemia de HIV/AIDS e ao descaso institucional, escolheu salvar vidas, mesmo quando isso significava arriscar tudo.
Em conversa exclusiva com a CAPRICHO, elenco e equipe da nova série da HBO Max, que estreia neste domingo (31), revelaram detalhes da preparação, falaram sobre a importância de homenagear figuras marcantes da época e refletiram sobre como a arte transforma a dor em memória coletiva.
Esse título nos lembra do grande respeito que precisamos ter por quem veio antes de nós. Se hoje podemos falar sobre isso e pessoas podem viver com HIV, é graças à dedicação, ao tempo e ao amor de quem veio antes
Johnny Massaro em entrevista à CAPRICHO
Inspirada em fatos reais, a produção acompanha um grupo de comissários de bordo que inicia uma arriscada operação de contrabando do AZT — o primeiro medicamento capaz de amenizar os efeitos do vírus, então proibido no país. Sob a liderança de Fernando (Johnny Massaro), comissário de bordo gay e vivendo com HIV, eles transformam suas viagens internacionais em uma rede clandestina de solidariedade. Ao lado dele estão Lea (Bruna Linzmeyer) e Raul (Ícaro Silva), que dividem as dores e afetos de uma geração que aprendeu cedo o que é resistência.
“Hoje, no Brasil, cerca de 10 mil pessoas morrem de AIDS todos os anos. No entanto, o país é o único no mundo que oferece tratamento e prevenção completamente gratuitos, em qualquer unidade de saúde pública. Então, a gente se pergunta: por que tanta gente ainda morre de AIDS no Brasil? A resposta é preconceito, estigmatização e desinformação”, alerta Ícaro Silva.
A série também se dedica a prestar homenagens a vozes e símbolos que marcaram a luta contra a desinformação e o preconceito nos anos 80 e 90. Entre elas está a atriz Sandra Bréa, o artista plástico Leonilson e o escritor Caio Fernando Abreu, cuja obra Morangos Mofados é citada. Além de batizar dois personagens centrais — Caio e Fernando —, a série também resgata a sensação metálica que o autor descrevia ao falar sobre os efeitos da AIDS no corpo.
O criador Thiago Pimentel explica que a ideia sempre foi transformar a dramaturgia em um tributo. “Quando tive a ideia original, estava assistindo ao documentário Carta para Além dos Muros, do André Canto. O título vem de um depoimento do Caio Fernando Abreu, que estava internado com AIDS. O processo de desenvolvimento, filmagem e produção foi totalmente absorvido por essas referências.”
Ao mesmo tempo, Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente não foge do incômodo. Em meio às homenagens, o público também se depara com campanhas de saúde da época, recheadas de preconceito e desinformação. Um recurso que lembra o quanto a comunicação oficial, em vez de acolher, ajudou a estigmatizar ainda mais a comunidade LGBTQIA+ e as pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Entre os destaques da trama está Lea, que engravida do chefe piloto em uma relação extraconjugal e decide seguir adiante com a gestação, mesmo sabendo dos riscos de enfrentar o estigma e perder o emprego. A personagem de Linzmeyer funciona como um espelho para o público, representando empatia e solidariedade por causas que não precisamos enfrentar diretamente, mas, sim, por puro senso de justiça.
Ainda hoje, infelizmente, há milhares de pessoas que não são acolhidas por suas famílias de sangue e encontram na comunidade queer o afeto necessário para viver. Essa é a força da comunidade: ela muda o rumo da história.
Ícaro Silva em entrevista à CAPRICHO
Para Johnny Massaro, esse é o paradoxo que atravessa toda a narrativa. “O vírus, apesar de trágico e letal, ajudou a consolidar esse senso de coletividade. Como o título da série sugere, às vezes algo terrível precisa acontecer para que a gente entenda o poder do coletivo e o quanto precisamos uns dos outros.”
A ambientação da série é outro destaque que ajuda a transportar o espectador diretamente para os anos 80 e 90. O cuidado com figurinos, cenários e texturas visuais cria uma sensação de imersão rara em produções recentes. Para reforçar a sensação de época, a equipe utilizou equipamentos como VHS e Super 8, integrando imagens de arquivo com filmagens originais.
A trilha sonora também cumpre papel fundamental. Entre clássicos brasileiros e internacionais, a série inclui hits de Cazuza, Marina Lima, Blondie e Sylvester — esta última, uma das primeiras artistas a se assumir fora do binário de gênero, que morreu de AIDS em 1989.
A arte tem uma inteligência enorme de contar as coisas de forma indireta. Quando você vê algo acontecendo com ‘ele’ ou ‘ela’, às vezes fica mais fácil se identificar e refletir. Esse é o poder da ficção: permite empatia e consciência sem expor ninguém diretamente.”
Bruna Linzmeyer em entrevista à CAPRICHO
Johnny Massaro complementa: “Recentemente, vi a Denise Fraga citando Simone de Beauvoir sobre as artes. Ela diz que existem dores tão grandes que as pessoas não conseguem lidar no cotidiano. A arte, então, desvela essas dores e as compartilha, fazendo lembrar que não estamos sozinhos. Essa série nos mostra que a dor a solidariedade são universais.”
Em um momento de crescente conservadorismo entre jovens, Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente se torna ainda mais necessária. A série leva para as telas a memória de uma geração que enfrentou o HIV/AIDS em meio à negligência institucional, mantendo sensibilidade para quem passou por isso e, ao mesmo tempo em que conecta essa história a quem não viveu a época. Ao retratar escolhas corajosas, famílias que se constroem por afeto e a luta por direitos básicos, a produção mostra que coragem e coletividade continuam sendo ferramentas essenciais para transformar realidades.